Sonho de uma Manhã de Inverno

Senhores, mais uma vez, se o tempo não estiver mau
Vai fazer-se em Pampilhosa o Enterro do Bacalhau.
Hoje acordei melancólico. O dia está estupidamente bonito mas, eu, permaneço abruptamente melancólico. Não vou insistir. Permanecerei na varanda a aproveitar o momento, a ver a felicidade nos outros, naqueles que deambulam pela avenida despovoada sem sentido aparente. Tomado pela preguiça vou dormitando. “As pessoas são estranhas quando também nós o somos, as caras tornam-se ríspidas quando estamos sós”. Estremeço com um burburinho; indago a sua origem e, a contra-luz, aceno um adeus fugaz à ti Adelina que passeia todo o dia, em trote largo e compassado, pelas ruas da velha urbe em busca de comparsa fiel para desenrolar a língua; qualidade de vida, realmente! E eu? Eu continuo simplesmente petrificado a acumular o sol nas minhas bochechas rosadas sem qualquer perspectiva de diversão para a tarde nem de loucura para a noite! Não tenho pressa. Nesta calma que me embala lembro-me do velho Enterro; lembro-me do velho Enterro e avisto ao longe a jovem Maria Rita que se aproxima, com o seu passo ligeiro mas firme, das imediações do meu repouso: silhueta refinada, cabelo à jovem adulta, com o seu característico olhar vulpino, enfim, atributos mais que suficientes para inspirar um efusivo piropo logo pela manhã. Contudo, não faz o meu estilo, vociferar piropos, e como mantenho uma boa relação com a jovem adulta envio-lhe um beijo e recosto-me satisfeito. Fico um pouco confuso. Tento relaxar. Imagino a Maria Rita no rabo do cortejo enfileirada no luzido batalhão feminino com uma vara na mão simbolizando uma espingarda; imagino-a e esboço um sorriso. Imagino-a de novo mas agora com a vara na mão e, desta vez, solto uma sonora gargalhada! Velhos tempos! No Casal, de onde começava o pomposo cortejo fúnebre para o enterro do ex-fiel amigo nas Covas da Baganha, a zombaria era tremenda: as pessoas amontoavam-se ávidas de diversão, reviam-se velhas amizades, semeavam-se novas relações e, numa massa homogénea de foliantes, rumávamos em direcção ao Freixo com os Fraldas de Fora na proa do desfile funesto. Lembro-me da Maria Rita, no ano em que fora uma das meninas de Guarda de Honra, de vara na mão a balancear livre pelas ruas da Pampilhosa Alta, alegre e desenvolta, no seu porte vulnífico: era uma miúda estonteante! Historicamente, comemorava-se o feito no Sábado de Aleluia como manifesto ao jejum estabelecido pela ortodoxia católica durante o período de Quaresma; a abstinência de carne desse período terminava com o famoso enterro do bacalhau – peixe de fácil conserva – no Sábado que precedia o Judas. Nós estávamos ali para a folia do momento e arrastávamo-nos pela noite presos por um só beijo! A salva de 21 tiros ouvimo-la já distantes do coval do pobre animal, enrolados no nosso espaço com o pensamento nas estrelas: belas noites! Acordo atordoado com as bochechas em fogo e as mãos geladas: tenho os olhos húmidos. Tudo isto é absurdo! A Maria Rita já não se encontra entre nós: deixou-nos injustamente órfãos e partiu para o desconhecido, há já muito tempo, tempo demais. Tento inutilmente recordar-me com quem a confundi mas o esforço é, ele também, inútil. Vencido, recolho-me cambaleante com a Maria Rita a beijar-me o pensamento, incessantemente. Por um segundo, desejei vorazmente ser eternamente jovem, tê-la de novo perto de mim, dizer-lhe tudo o que ficou suspenso, preso na timidez da idade. Voltei a adormecer.
Vai fazer-se em Pampilhosa o Enterro do Bacalhau.
Hoje acordei melancólico. O dia está estupidamente bonito mas, eu, permaneço abruptamente melancólico. Não vou insistir. Permanecerei na varanda a aproveitar o momento, a ver a felicidade nos outros, naqueles que deambulam pela avenida despovoada sem sentido aparente. Tomado pela preguiça vou dormitando. “As pessoas são estranhas quando também nós o somos, as caras tornam-se ríspidas quando estamos sós”. Estremeço com um burburinho; indago a sua origem e, a contra-luz, aceno um adeus fugaz à ti Adelina que passeia todo o dia, em trote largo e compassado, pelas ruas da velha urbe em busca de comparsa fiel para desenrolar a língua; qualidade de vida, realmente! E eu? Eu continuo simplesmente petrificado a acumular o sol nas minhas bochechas rosadas sem qualquer perspectiva de diversão para a tarde nem de loucura para a noite! Não tenho pressa. Nesta calma que me embala lembro-me do velho Enterro; lembro-me do velho Enterro e avisto ao longe a jovem Maria Rita que se aproxima, com o seu passo ligeiro mas firme, das imediações do meu repouso: silhueta refinada, cabelo à jovem adulta, com o seu característico olhar vulpino, enfim, atributos mais que suficientes para inspirar um efusivo piropo logo pela manhã. Contudo, não faz o meu estilo, vociferar piropos, e como mantenho uma boa relação com a jovem adulta envio-lhe um beijo e recosto-me satisfeito. Fico um pouco confuso. Tento relaxar. Imagino a Maria Rita no rabo do cortejo enfileirada no luzido batalhão feminino com uma vara na mão simbolizando uma espingarda; imagino-a e esboço um sorriso. Imagino-a de novo mas agora com a vara na mão e, desta vez, solto uma sonora gargalhada! Velhos tempos! No Casal, de onde começava o pomposo cortejo fúnebre para o enterro do ex-fiel amigo nas Covas da Baganha, a zombaria era tremenda: as pessoas amontoavam-se ávidas de diversão, reviam-se velhas amizades, semeavam-se novas relações e, numa massa homogénea de foliantes, rumávamos em direcção ao Freixo com os Fraldas de Fora na proa do desfile funesto. Lembro-me da Maria Rita, no ano em que fora uma das meninas de Guarda de Honra, de vara na mão a balancear livre pelas ruas da Pampilhosa Alta, alegre e desenvolta, no seu porte vulnífico: era uma miúda estonteante! Historicamente, comemorava-se o feito no Sábado de Aleluia como manifesto ao jejum estabelecido pela ortodoxia católica durante o período de Quaresma; a abstinência de carne desse período terminava com o famoso enterro do bacalhau – peixe de fácil conserva – no Sábado que precedia o Judas. Nós estávamos ali para a folia do momento e arrastávamo-nos pela noite presos por um só beijo! A salva de 21 tiros ouvimo-la já distantes do coval do pobre animal, enrolados no nosso espaço com o pensamento nas estrelas: belas noites! Acordo atordoado com as bochechas em fogo e as mãos geladas: tenho os olhos húmidos. Tudo isto é absurdo! A Maria Rita já não se encontra entre nós: deixou-nos injustamente órfãos e partiu para o desconhecido, há já muito tempo, tempo demais. Tento inutilmente recordar-me com quem a confundi mas o esforço é, ele também, inútil. Vencido, recolho-me cambaleante com a Maria Rita a beijar-me o pensamento, incessantemente. Por um segundo, desejei vorazmente ser eternamente jovem, tê-la de novo perto de mim, dizer-lhe tudo o que ficou suspenso, preso na timidez da idade. Voltei a adormecer.
24 Comments:
Ola Rand
Sabes qe tambem eu participei do ultimo "enterro do bacalhau" que teve como barqueiros o Alvaro Jose e a Sandra Lopes a cantar o fado ...
Bons tempos... Fazia parte do exercito .
Obrigado por relembrares todos estes episodios
até breve
"STRANGE DAYS" Futuro fechado...Presente estagnado...Passado mal aproveitado...
Amigo,
Gostei.
Com que então um folião dos diabos...
Saudações!
Bom dia!
Cá estamos nós no domínio das tradições de génese profunda e parodiante da Pampi. remota...
Nunca assisti a tal manisfestação mas pelo que nos conta eram eventos em grande.
Juízo p'ros malandros!
Caro Randulfes,
Um Sonho de uma Noite de Verão que não terminou bem...
Até já
Cá estou eu outra vez a observar que a qualidade dos textos continua assegurada!!
Caro Randulfes tenho a honra de possuir registos fotográficos de tal época!! Relíquias!!
Cumps. ao nosso pessoal
"Há, ao longo de toda a acção, uma cúmplice interferência do mundo sobrenatural no mundo dos mortais, uma contaminação da realidade pelo maravilhoso, que subverte os valores da ordem e do poder e favorece o amor".
Não acha?
Alminhas,
Gostaria de fazer um apelo ao seu altuísmo:
que tal partilhar neste espaço as suas relíquias?
Quem não é daí ou nasceu depois dos anos 80 não faz ideia do que se trata (essa festa do enterro)!
Fico a aguardar.
“Dorme tu, e eu te enroscarei no meu braço... tal como a corriola se enrosca gentilmente à doce madressilva.”
S N V, William S.
Um tributo magnífico!!...
"Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte."
A.O'N.
Amigo:
é com todo o prazer que partilho as riquezas convosco! mas para isso têm que me dizer como!!!
Randulf precisa de falar da Pampilhosa
pois,pois,Pampilhosa a concelho
Porque nao a capital? O ferrovias tem cada uma que nao lembra o diabo...
Finalmente um Ferroviario esperto.
Ora ora dois inteligentes se juntaram. Um ferroviario e um citadino. Mistura explosiva. Vamos ver por quanto tempo temos namoro...
Misturas com ferroviarios nem pensar. Ja basta andarmos sempre a ensinar-lhes tudo...
Parabéns caro Randulfes. Não conheço a vossa terra, nem tão pouco as vossas tão caricatas personagens. Apaixonei-me pelas vossas "fábulas" (se me permite o plágio, nosso bom cidadão) e gabo-lhe o jeito para as contar. Neste texto, em concreto, pude, em cada frase, absorver a beleza nostálgica que reside na eterna saudade.
Um tributo aos que já não estão entre nós.
O sonho é, por natureza, algo supostamente agradável, mescla confusa de realidade e vontade, refúgio permanente das nossas mais íntimas loucuras. Assim como "há palavras que nos beijam como se tivessem boca" existem sonhos que nos possuem como se tiveseem desejo: desejo de materialização.
Quando aprendemos a distinguir o frio e o quente das nossas criações idílicas realizamos que "de sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos ".
Bons sonhos, estimado painel.
Já o nosso Pessoa diria "Tudo é ilusão, sonhar é sabê-lo".
Muito agradável meu bom velho Randulfes.
Até já
Olha que coisa mais linda mais cheia de graça, a Maria Rita que vai e que passa...
Amigas e amigos,
Juízo e contenção nos festejos que se avizinham!
Sim senhor, que belas as garotas da Pampi...
"Ah, por que estou tão sozinho?
Ah, por que tudo é tão triste?
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha,
Que também passa sozinha.
Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa,
O mundo inteirinho
Se enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor. "
por causa do Amor,
por causa do Amor...
Grande Jobim!
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