Pampilhosa Linda

Espaço de libertação intelectual no âmbito das realidades transcendentes que ultrapassa as amplas margens da ortodoxia, com incursões na antropologia filosófica e na psicognosia, de cariz socio-cultural tenuamente perfumado com poéticas gotículas proeminentemente irónico-macónicas! Bem hajam!!!

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Sonho de uma Manhã de Inverno



Senhores, mais uma vez, se o tempo não estiver mau
Vai fazer-se em Pampilhosa o Enterro do Bacalhau.


Hoje acordei melancólico. O dia está estupidamente bonito mas, eu, permaneço abruptamente melancólico. Não vou insistir. Permanecerei na varanda a aproveitar o momento, a ver a felicidade nos outros, naqueles que deambulam pela avenida despovoada sem sentido aparente. Tomado pela preguiça vou dormitando. “As pessoas são estranhas quando também nós o somos, as caras tornam-se ríspidas quando estamos sós”. Estremeço com um burburinho; indago a sua origem e, a contra-luz, aceno um adeus fugaz à ti Adelina que passeia todo o dia, em trote largo e compassado, pelas ruas da velha urbe em busca de comparsa fiel para desenrolar a língua; qualidade de vida, realmente! E eu? Eu continuo simplesmente petrificado a acumular o sol nas minhas bochechas rosadas sem qualquer perspectiva de diversão para a tarde nem de loucura para a noite! Não tenho pressa. Nesta calma que me embala lembro-me do velho Enterro; lembro-me do velho Enterro e avisto ao longe a jovem Maria Rita que se aproxima, com o seu passo ligeiro mas firme, das imediações do meu repouso: silhueta refinada, cabelo à jovem adulta, com o seu característico olhar vulpino, enfim, atributos mais que suficientes para inspirar um efusivo piropo logo pela manhã. Contudo, não faz o meu estilo, vociferar piropos, e como mantenho uma boa relação com a jovem adulta envio-lhe um beijo e recosto-me satisfeito. Fico um pouco confuso. Tento relaxar. Imagino a Maria Rita no rabo do cortejo enfileirada no luzido batalhão feminino com uma vara na mão simbolizando uma espingarda; imagino-a e esboço um sorriso. Imagino-a de novo mas agora com a vara na mão e, desta vez, solto uma sonora gargalhada! Velhos tempos! No Casal, de onde começava o pomposo cortejo fúnebre para o enterro do ex-fiel amigo nas Covas da Baganha, a zombaria era tremenda: as pessoas amontoavam-se ávidas de diversão, reviam-se velhas amizades, semeavam-se novas relações e, numa massa homogénea de foliantes, rumávamos em direcção ao Freixo com os Fraldas de Fora na proa do desfile funesto. Lembro-me da Maria Rita, no ano em que fora uma das meninas de Guarda de Honra, de vara na mão a balancear livre pelas ruas da Pampilhosa Alta, alegre e desenvolta, no seu porte vulnífico: era uma miúda estonteante! Historicamente, comemorava-se o feito no Sábado de Aleluia como manifesto ao jejum estabelecido pela ortodoxia católica durante o período de Quaresma; a abstinência de carne desse período terminava com o famoso enterro do bacalhau – peixe de fácil conserva – no Sábado que precedia o Judas. Nós estávamos ali para a folia do momento e arrastávamo-nos pela noite presos por um só beijo! A salva de 21 tiros ouvimo-la já distantes do coval do pobre animal, enrolados no nosso espaço com o pensamento nas estrelas: belas noites! Acordo atordoado com as bochechas em fogo e as mãos geladas: tenho os olhos húmidos. Tudo isto é absurdo! A Maria Rita já não se encontra entre nós: deixou-nos injustamente órfãos e partiu para o desconhecido, há já muito tempo, tempo demais. Tento inutilmente recordar-me com quem a confundi mas o esforço é, ele também, inútil. Vencido, recolho-me cambaleante com a Maria Rita a beijar-me o pensamento, incessantemente. Por um segundo, desejei vorazmente ser eternamente jovem, tê-la de novo perto de mim, dizer-lhe tudo o que ficou suspenso, preso na timidez da idade. Voltei a adormecer.

24 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Ola Rand
Sabes qe tambem eu participei do ultimo "enterro do bacalhau" que teve como barqueiros o Alvaro Jose e a Sandra Lopes a cantar o fado ...
Bons tempos... Fazia parte do exercito .
Obrigado por relembrares todos estes episodios
até breve

15 dezembro, 2005 14:05  
Anonymous Anónimo said...

"STRANGE DAYS" Futuro fechado...Presente estagnado...Passado mal aproveitado...

15 dezembro, 2005 15:16  
Anonymous Anónimo said...

Amigo,
Gostei.
Com que então um folião dos diabos...
Saudações!

15 dezembro, 2005 15:44  
Anonymous Anónimo said...

Bom dia!
Cá estamos nós no domínio das tradições de génese profunda e parodiante da Pampi. remota...
Nunca assisti a tal manisfestação mas pelo que nos conta eram eventos em grande.

Juízo p'ros malandros!

15 dezembro, 2005 16:16  
Anonymous Anónimo said...

Caro Randulfes,

Um Sonho de uma Noite de Verão que não terminou bem...
Até já

15 dezembro, 2005 19:20  
Anonymous Anónimo said...

Cá estou eu outra vez a observar que a qualidade dos textos continua assegurada!!

Caro Randulfes tenho a honra de possuir registos fotográficos de tal época!! Relíquias!!

Cumps. ao nosso pessoal

15 dezembro, 2005 22:19  
Anonymous Anónimo said...

"Há, ao longo de toda a acção, uma cúmplice interferência do mundo sobrenatural no mundo dos mortais, uma contaminação da realidade pelo maravilhoso, que subverte os valores da ordem e do poder e favorece o amor".

Não acha?

15 dezembro, 2005 22:56  
Anonymous Anónimo said...

Alminhas,

Gostaria de fazer um apelo ao seu altuísmo:
que tal partilhar neste espaço as suas relíquias?
Quem não é daí ou nasceu depois dos anos 80 não faz ideia do que se trata (essa festa do enterro)!

Fico a aguardar.

15 dezembro, 2005 23:02  
Anonymous Anónimo said...

“Dorme tu, e eu te enroscarei no meu braço... tal como a corriola se enrosca gentilmente à doce madressilva.”

S N V, William S.

15 dezembro, 2005 23:16  
Anonymous Anónimo said...

Um tributo magnífico!!...

16 dezembro, 2005 19:28  
Anonymous Anónimo said...

"Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte."

A.O'N.

16 dezembro, 2005 20:25  
Anonymous Anónimo said...

Amigo:

é com todo o prazer que partilho as riquezas convosco! mas para isso têm que me dizer como!!!

16 dezembro, 2005 22:06  
Anonymous Anónimo said...

Randulf precisa de falar da Pampilhosa

17 dezembro, 2005 16:38  
Anonymous Anónimo said...

pois,pois,Pampilhosa a concelho

17 dezembro, 2005 16:39  
Anonymous Anónimo said...

Porque nao a capital? O ferrovias tem cada uma que nao lembra o diabo...

17 dezembro, 2005 16:40  
Anonymous Anónimo said...

Finalmente um Ferroviario esperto.

17 dezembro, 2005 16:42  
Anonymous Anónimo said...

Ora ora dois inteligentes se juntaram. Um ferroviario e um citadino. Mistura explosiva. Vamos ver por quanto tempo temos namoro...

17 dezembro, 2005 16:44  
Anonymous Anónimo said...

Misturas com ferroviarios nem pensar. Ja basta andarmos sempre a ensinar-lhes tudo...

17 dezembro, 2005 16:46  
Anonymous Anónimo said...

Parabéns caro Randulfes. Não conheço a vossa terra, nem tão pouco as vossas tão caricatas personagens. Apaixonei-me pelas vossas "fábulas" (se me permite o plágio, nosso bom cidadão) e gabo-lhe o jeito para as contar. Neste texto, em concreto, pude, em cada frase, absorver a beleza nostálgica que reside na eterna saudade.
Um tributo aos que já não estão entre nós.

17 dezembro, 2005 22:40  
Blogger Gonçalo Randulfes said...

O sonho é, por natureza, algo supostamente agradável, mescla confusa de realidade e vontade, refúgio permanente das nossas mais íntimas loucuras. Assim como "há palavras que nos beijam como se tivessem boca" existem sonhos que nos possuem como se tiveseem desejo: desejo de materialização.
Quando aprendemos a distinguir o frio e o quente das nossas criações idílicas realizamos que "de sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos ".

Bons sonhos, estimado painel.

19 dezembro, 2005 02:54  
Anonymous Anónimo said...

Já o nosso Pessoa diria "Tudo é ilusão, sonhar é sabê-lo".
Muito agradável meu bom velho Randulfes.
Até já

19 dezembro, 2005 13:32  
Anonymous Anónimo said...

Olha que coisa mais linda mais cheia de graça, a Maria Rita que vai e que passa...


Amigas e amigos,

Juízo e contenção nos festejos que se avizinham!

23 dezembro, 2005 17:28  
Anonymous Anónimo said...

Sim senhor, que belas as garotas da Pampi...


"Ah, por que estou tão sozinho?
Ah, por que tudo é tão triste?
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha,
Que também passa sozinha.

Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa,
O mundo inteirinho
Se enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor. "

23 dezembro, 2005 18:05  
Anonymous Anónimo said...

por causa do Amor,
por causa do Amor...

Grande Jobim!

01 janeiro, 2006 18:36  

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