Pampilhosa Linda

Espaço de libertação intelectual no âmbito das realidades transcendentes que ultrapassa as amplas margens da ortodoxia, com incursões na antropologia filosófica e na psicognosia, de cariz socio-cultural tenuamente perfumado com poéticas gotículas proeminentemente irónico-macónicas! Bem hajam!!!

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Disponível para Amar


“Aquilo que de verdadeiramente significativo podemos dar a alguém é o que nunca demos a outra pessoa, porque nasceu e se inventou por obra do afecto”

Fernando Namora



Raras são as obras que nos envolvem de um modo tão peculiar que encontramos dificuldade em expressar-nos perante a sua magnificência. Acabo de reler “A Espuma dos Dias” obra que, nas palavras de Queneau é o mais pungente dos romances de amor contemporâneos. É, no mínimo, uma obra singular, uma visão ímpar do Amor através da pluma caprichosa de Vian. É indubitavelmente, na sua imensidão criativa, um pequeno hino ao Amor.
Chloé é um desejo, uma mulher sonhada que emana de um arranjo musical de Duke Ellington, num momento de profunda inspiração; Colin é um jovem, disponível para amar, que numa soirée oferecida pela sua amiga Ísis, e após confidenciar ao seu rato que estaria disposto para o Amor, se torna o artesão da sua ilusão, da sua paixão e vítima do seu próprio sonho: Chloé, durante as núpcias, adoece e é-lhe diagnosticado um nenúfar que cresce no seu interior incessantemente. Por Amor, Colin abdica do mundo onírico e de luxúria em se sempre vivera e enfrenta a dura realidade da vida. Esta transformação idiossincrática da personagem é algo de atrozmente insuportável.
Contemplo, por momentos, fixamente o meu velho narguilé que pelo jogo de sombras e luz que o beijam lhe incrementam o seu charme e exotismo: está feito o convite; será mais um serão de cumplicidade. Eu aceito! Vem-me à memória uma soberba discrição de Eça: “as tendas abertas por diante deixavam ver os grandes lustres pendentes, os tapetes de Meca e de Damasco, onde se encruzavam as soberbas figuras dos xeques, fumando gravemente o narguilé”. Julga-se que tenha surgido no Oriente; julga-se, apenas. Olho de soslaio para minha tabaqueira: opto por um muessuel Starbuzz de menta-verde. Sinto que é a melhor escolha. Inalo profundamente este fumo que me consome e repouso, consumido. Como é bom estar contigo, meu velho narguilé.
É nestes momentos de íntima tranquilidade que imagino a beleza rara de Chloé contrastando com o desespero exacerbado de Colin na eminência da sua perda, sobrevivendo à espuma dos dias; sentimento angustiante esse de perder qualquer coisa que amamos, Colin! Este tentará em vão tudo para inverter o desenrolar da narrativa mordaz de Vian que não poupará Chloé ao Limbo e Colin ao desespero do amante eterno. Imagino-o perdido no fim, já fora da sua personagem, num monólogo insuportavelmente triste a declarar: desde que te perdi, o palco está deserto como o mundo e o mundo está deserto como um palco vazio…* enquanto inalo consumido este fumo que me consome e repouso, profundamente, nesta espuma dos meus dias.

* Jacques e o seu Amo, M Kundera

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Caro Randulfes,

Não há nada como a dor para voltarmos a sentir a pungente necessidade da escrita.
Ela pode ser uma Maria ou uma Chloé, tudo se tolera quando se ama, não concorda?
O que é certo é que esta é, ao seu estilo, uma bela demonstração de amor. Toma as dores dos outros para esconder as suas, tão poético, tão fingidor...
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo e isso é o que nos mata, o que não nos deixa esquecer...

Sofrer não nos torna mais fracos, antes pelo contrário, torna-nos melhores.
Se calhar estava escrito lá em cima que tinha que ser assim...

Não me dou ao trabalho das aspas nas citações, porque as conhecemos tão bem que já fizemos delas a nossa língua...

Até sempre Randulfes

Inês

04 março, 2007 10:29  
Anonymous Anónimo said...

E dado que falamos de Amor, aqui vos sugiro um dos poemas maiores, na minha opinião, que abordam esta secular temática:


Adeus Português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti

AO

Até breve,

G Randulfes

17 março, 2007 18:43  
Anonymous Anónimo said...

Inês,

continua brilhante, como sempre.

Até breve

G Randulfes

17 março, 2007 18:44  

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