Pampilhosa Linda

Espaço de libertação intelectual no âmbito das realidades transcendentes que ultrapassa as amplas margens da ortodoxia, com incursões na antropologia filosófica e na psicognosia, de cariz socio-cultural tenuamente perfumado com poéticas gotículas proeminentemente irónico-macónicas! Bem hajam!!!

segunda-feira, abril 17, 2006

Adeus Jennifer


Desfiz-me do peso que me sufocava e inspirei compulsivamente o ar que me fugia debaixo do cobertor. Com os pés, empurrei-o com força até ao chão, libertando-me do seu fogo abrasador, na esperança de aniquilar a súbita aflição que me assolou. O instinto de sobrevivência rebentou as correntes que me prendiam as pálpebras, provocando uma inócua colisão com o escuro do quarto. Com um salto ergui-me na cama e procurei avidamente os dígitos do relógio. Três e um quarto (bela hora!...) É impressionante a facilidade com que um mero sonho, um fugaz passeio recreativo do subconsciente nos interpela com a dura realidade da existência e, em milésimos, nos reduz à mais ínfima capacidade de ser humano. Respirei compassadamente para abrandar o ritmo cardíaco, ao mesmo tempo que (qual Ellery Queen), tentava reconstruir os factos… O sabor amargo da adrenalina pediu-me um cigarro, no entanto, senti que este familiar (fantástico) paladar, vinha acompanhado de um quase imperceptível “aroma” dos seus ondulados cabelos ruivos.
Voltei inesperadamente aos anos sessenta, à guerra colonial, à censura, às fotos a preto e branco.
Foi num habitual regresso a casa, chegado de Coimbra, que fui agraciado com a sua beleza intemporal. Estava sentada numa das mesas do bar da C.P segurando a chávena de café com as pontas dos dedos de uma das mãos, enquanto que a outra, vestida por uma luva de peliça preta, suportava um delgado cigarro.
-Então?
-Oh…Desculpe lá Sr. António, estava distraído. Era um maço de três vintes, “fachavor”.
Apreciei a sua beleza durante mais algum tempo. Fumei um cigarro, dois, três…Admirei a sua tez clara e a sua silhueta esbelta, imaginei como seria o seu corpo por baixo do casaco justo e da saia travada que lhe realçava a anca, como seria que o seu cabelo solto se adequaria ao contorno dos seios…Acabámos por fazer conversa. “Confiou-me” que era inglesa, que se dirigia a Paris e que por fim se iria refugiar durante uns tempos em Genebra (não me esclarecendo porém acerca dos motivos que levaram á escolha de um percurso tão singular).
Acabámos por jantar; fumámos e bebemos brandys. A pernoita foi numa pensão cá da terra, uma noite que entre beijos e promessas, contos e segredos, durou até á tarde do dia seguinte.
Chegada a hora do embarque, acompanhei-a junto da sua carruagem e permaneci até à partida. O ti António da cantina deixou escapar um sorriso quando o cumprimentei e manteve-se á porta do restaurante a observar o panorama.
As despedidas custam, mas às vezes custam ainda mais. Fiquei a vê-la a afastar-se debruçada na janela do Sud, com o queixo apoiado sobre as mãos e os olhos a deixarem escapar uma traiçoeira mas sentida lágrima. Tinha-me pedido que a visitasse mais tarde; prometi-lhe que sim, contudo, os dias vão passando, vão passando e quando se dá por ela acordamos a meio da noite em sobressalto, trinta e tal anos depois, já sem saber o que é sonho e o que é realidade.
Quando deixei de ver o comboio fiz meia volta em direcção à rua; profundamente comovido fingi não reparar no ti António, que continuava a apreciar o filme. Sempre com os olhos fincados no chão, fiz o caminho em direcção a casa, levantando-os apenas quando três jovens impecavelmente fardadas, me convidaram a contribuír com um donativo para os B.V.P.. Procurei nos bolsos do casaco. Num deles estavam cinco escudos que foram para os bombeiros, no outro estava… Uma bela madeixa de cabelo ruivo!
Até sempre!!!

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Dizer adeus tem sempre um travo trágico de esperança e de saudade não é Rand...

22 julho, 2006 20:21  

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