Pampilhosa Linda

Espaço de libertação intelectual no âmbito das realidades transcendentes que ultrapassa as amplas margens da ortodoxia, com incursões na antropologia filosófica e na psicognosia, de cariz socio-cultural tenuamente perfumado com poéticas gotículas proeminentemente irónico-macónicas! Bem hajam!!!

terça-feira, dezembro 27, 2005

A perdição de Lúcio


Sentei-me no chão arenoso e aconcheguei a cabeça no tronco do pinheiro bravo que me protegia do sol escaldante dos finais de Julho. Desci levemente as pálpebras e absorvi com indescritível prazer as dádivas que a natureza me oferecia aos sentidos. Ouvi os grilos fora das tocas, o martelar das cigarras, o zumbir das abelhas, senti uma brisa morna a subir pelo peito e a fazer abanar o trevo amarelo que sorvia gulosamente, vi o aproximar de uma pega cantarolante… deixei-me embalar na harmonia dos sentidos; esqueci-me das bicas curtas, dos cigarros, das miúdas da "Pampi" e das batidas à raposa. Ouví os acordes de uma viola que soava a mel e uma voz doce que cantava baixinho. Ouvi o sussurro de uma donzela que pedia por Deus que a deixassem viver, que a deixassem amar, que a deixassem escolher a sua própria vida, a sua própria forma de se aproximar do mesmo Deus.
Quis o destino que certo dia, num solarengo Domingo de Agosto, ao dirigir-se para a habitual missa se atravessou a bela donzela com o robusto cigano Lúcio (na época vinham tribos ciganas acampar sazonalmente nas terras de Pampilhosa. Erguiam as tendas junto da Feira – Velha; Ficavam entre uma e várias semanas e desapareciam de um dia para o outro sem deixar rasto). Ele tentou fazer o seu papel de cigano, baixando o olhar e fingindo não reparar na sua beleza, mas os seus olhos cruzaram-se com os dela deixando trespassar o que ele tentava esconder. Amavam-se no recôndito dum vasto campo de oliveiras, e sentavam–se um pouco mais adiante numas pedras já perto do fresco pinhal, abraçados e embevecidos pelo amor e pelas doces notas da viola.
Rapidamente se soube dos amantes. A família da jovem donzela tratou de a despachar para um colégio (penso que em Lisboa), enquanto que os homens fortes do clã fizeram por resolver as coisas à boa maneira cigana, não se sabendo até hoje o destino do jovem Lúcio. Uns garotos encontraram a velha viola abandonada junto deste pinheiro que hoje me serve de colo e os ciganos desapareceram mágicamente, regressando passados quatro anos mas já sem a companhia do jovem Lúcio. Depois disso, nunca mais foram vistos.
Diz-se que às vezes no início de Agosto se consegue ouvir a viola do cigano, que em espírito vem cantar à sua amada, mas também se diz que só os que têm coração digno, livre de dogmas e preconceitos a conseguem ouvir.
Ao reabrir os olhos deixei de ouvir a viola. Recostei-me preguiçosamente no pinheiro e troquei o trevo por um cigarro... Consciente de que jamais a voltaria a ouvir.

sexta-feira, dezembro 23, 2005

3 Contos de Natal




3 Nacos de bolo-rei

Era Natal naquela manhã fria e cinzenta, de chinelos e vestido salpintado da cor dos dias, lenço na cabeça a deixar a fronte descoberta, bigode e barba mesclada de branco desfigurando a feminilidade, passo firme e calmo para mais uma travessia do passadiço em direcção à estação esperando a chegada das frescas noticias transportadas no comboio; talvez o “Século”, o “Primeiro de Janeiro”,” A Bola” o “Notícias”, parar, e ralhar com uma gabardina suja que moldava um corpo estendido de alma ausente num dos planos bancos que se confundiam com a vidraçante verde-escura azulejaria da estação; pegar nos rolos de jornais e fazer a travessia inversa distribuindo-os pelos quiosques, cafés e tascas em redor, acabando a entrega até ao “piolho” dizendo olá ao homem sentado no Freixo com o cão, recolhendo-se por fim em volta da braseira com restos de carvão oferecidos e, perante este lume raro e brando, coser dois ou três saiotes, sacar de um dos bolsos, uma bolsa de pano com pedaços de bolo-rei oferecido no bar da estação, alegremente recordar tempos idos e com bonomia aceitar mais esta noite enquanto aconchega velhos jornais ao corpo que a permitiam isolar do gélido mundo exterior.
-Adeus..., Sofia.

Corpo estendido nos velhos bancos da estação, olhos papudos de álcool, encravados no meio de tufos de sujos cabelos e barba, gabardina cuja cor original seria tarefa para os “ CSI ”; sapatos talvez desencontrados, um sem tacão o outro aberto ao estilo boca de sapo, com os resto de sola a deixarem brotar meias de consistência duvidosa. O corpo, esse, não se mexia, nem se ouvia respirar; por isso por vezes os ferroviários mexiam-lhe no dorso a ver se estava no alcoólico justo sono ou se era outra vez o famoso estado cataléptico que o já fizera, certa vez, acordar na morgue de Coimbra. Mas desta vez, tudo bem: acordou ao som dos ralhetes de Sofia, bocejou, espreguiçou e esfregou os olhos várias vezes e, com eles esbugalhados, fez pequeno e espantado baloiço de cabeça ao encontrar a seu lado um pedaço de bolo-rei. Há muito tempo que o seu estado não lhe permitia ter calendários e a comida não lhe era vital; os seus únicos pontos de referência eram os comboios, as estações de Pampilhosa, Figueira, Coimbra ou Santa-Comba e todas as tascas próximas destas; por isso, tudo o mais era estranho para ele. Por fim pegou no bolo, que quase tragou de uma vez, remexeu nos bolso à procura de moedas e num movimento brusco saltou para dentro do bar à procura do cálice que evitaria as tremuras e o delirium do resto do dia.
-Adeus... , Vitorino.

Deu um passo na rua com o seu fiel amigo de banda, fugindo do frio da pedra calcária da casa; pequeno, no seu coçado e tradicional casaco cinzento, de boina direita enfiada até às orelhas a capsular a cabeça para enganar o Inverno, virou-se para nascente na procura da loja; mas devido à data não se avistava ninguém e a rua soava-lhe ainda mais deserta sem a habitual gritaria das crianças e mulheres do costume. Só, com o seu fiel Jake, resolveu então traçar a rua para poente na procura das outras lojas e de um pouco mais de luz.
Por fim, sentado no Freixo virado para o Coreto com as costas irradiadas da luz do meio da manhã, na sua calma habitual, sacou da sua inseparável navalha, recortou o naco de bolo-rei pelas várias fatias que iria partilhar lenta e deliciadamente com o seu fiel amigo, seu companheiro até ao fim dos dias.
-Adeus ..., Perleta


Para todos os leitores e comentadores um sincero desejo de BOM NATAL

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Sonho de uma Manhã de Inverno



Senhores, mais uma vez, se o tempo não estiver mau
Vai fazer-se em Pampilhosa o Enterro do Bacalhau.


Hoje acordei melancólico. O dia está estupidamente bonito mas, eu, permaneço abruptamente melancólico. Não vou insistir. Permanecerei na varanda a aproveitar o momento, a ver a felicidade nos outros, naqueles que deambulam pela avenida despovoada sem sentido aparente. Tomado pela preguiça vou dormitando. “As pessoas são estranhas quando também nós o somos, as caras tornam-se ríspidas quando estamos sós”. Estremeço com um burburinho; indago a sua origem e, a contra-luz, aceno um adeus fugaz à ti Adelina que passeia todo o dia, em trote largo e compassado, pelas ruas da velha urbe em busca de comparsa fiel para desenrolar a língua; qualidade de vida, realmente! E eu? Eu continuo simplesmente petrificado a acumular o sol nas minhas bochechas rosadas sem qualquer perspectiva de diversão para a tarde nem de loucura para a noite! Não tenho pressa. Nesta calma que me embala lembro-me do velho Enterro; lembro-me do velho Enterro e avisto ao longe a jovem Maria Rita que se aproxima, com o seu passo ligeiro mas firme, das imediações do meu repouso: silhueta refinada, cabelo à jovem adulta, com o seu característico olhar vulpino, enfim, atributos mais que suficientes para inspirar um efusivo piropo logo pela manhã. Contudo, não faz o meu estilo, vociferar piropos, e como mantenho uma boa relação com a jovem adulta envio-lhe um beijo e recosto-me satisfeito. Fico um pouco confuso. Tento relaxar. Imagino a Maria Rita no rabo do cortejo enfileirada no luzido batalhão feminino com uma vara na mão simbolizando uma espingarda; imagino-a e esboço um sorriso. Imagino-a de novo mas agora com a vara na mão e, desta vez, solto uma sonora gargalhada! Velhos tempos! No Casal, de onde começava o pomposo cortejo fúnebre para o enterro do ex-fiel amigo nas Covas da Baganha, a zombaria era tremenda: as pessoas amontoavam-se ávidas de diversão, reviam-se velhas amizades, semeavam-se novas relações e, numa massa homogénea de foliantes, rumávamos em direcção ao Freixo com os Fraldas de Fora na proa do desfile funesto. Lembro-me da Maria Rita, no ano em que fora uma das meninas de Guarda de Honra, de vara na mão a balancear livre pelas ruas da Pampilhosa Alta, alegre e desenvolta, no seu porte vulnífico: era uma miúda estonteante! Historicamente, comemorava-se o feito no Sábado de Aleluia como manifesto ao jejum estabelecido pela ortodoxia católica durante o período de Quaresma; a abstinência de carne desse período terminava com o famoso enterro do bacalhau – peixe de fácil conserva – no Sábado que precedia o Judas. Nós estávamos ali para a folia do momento e arrastávamo-nos pela noite presos por um só beijo! A salva de 21 tiros ouvimo-la já distantes do coval do pobre animal, enrolados no nosso espaço com o pensamento nas estrelas: belas noites! Acordo atordoado com as bochechas em fogo e as mãos geladas: tenho os olhos húmidos. Tudo isto é absurdo! A Maria Rita já não se encontra entre nós: deixou-nos injustamente órfãos e partiu para o desconhecido, há já muito tempo, tempo demais. Tento inutilmente recordar-me com quem a confundi mas o esforço é, ele também, inútil. Vencido, recolho-me cambaleante com a Maria Rita a beijar-me o pensamento, incessantemente. Por um segundo, desejei vorazmente ser eternamente jovem, tê-la de novo perto de mim, dizer-lhe tudo o que ficou suspenso, preso na timidez da idade. Voltei a adormecer.

segunda-feira, dezembro 05, 2005

O Museu das Figuras do Barro

Numa breve visita que efectuei a Londres, passando por Baker Street, acabei por visitar o museu de cera da Madame Tussauds; no meio das figuras ocorreu-me fazer o mesmo em relação aos muitos personagens carismáticos que percorreram, ou ainda percorrem, terras em redor do Cértima nascente e assim ir ao encontro de muitos dos nossos beneméritos leitores deste espaço. Por estas boas razões vou inaugurar um cantinho neste blog ao qual chamarei “Museu da Figuras do Barro”; espero que seja do vosso agrado e cá esperarei os vossos oportunos e prementes comentários.

Figura 1 A velha Tin

De saiote preto, tamancos de sonoridade trauteante ecoando entre o casario, pernas escazeladas e arqueadas pela idade que a obrigava a usar varapau de oliveira agarrado às mãos e, amiúde, bater na porta das mais variadas casas vociferando sempre tin...tin…tin…; confesso que nunca lhe ouvi outra palavra da boca que não fosse tin. Hoje tenho a certeza que se Almada Negreiros tivesse passado por aquí o epitáfio do manisfesto anti-dantas seria: Morra o Dantas, morra... Tin…! Outra particularidade da sorridente Tin era o de só possuir dois dentes, dois caninos, um em baixo e outro em cima, em lados opostos, que se fosse hoje seria considerado esplendor de arte piercing, ou seja, arte tribal no seu estado mais puro. A Tin também nunca conseguiu beber um copo por mais de uma vez, fosse qual fosse o tamanho do copo ou a natureza do liquido; mas por aí nada de extraordinário porque hoje conheço muitos agarrados a balcões capazes de fazer o mesmo: Bebe o copo, bebe... Tin…! Mas a figura da Tin também era usada na altura por muitas mães da alta quando os filhos não queriam comer a sopa diziam: se não comeres a sopa, vou chamar a Tin , e aí, os ganapos com medo de tal imagem, logo pegavam na colher e chlap!chlap!comiam a sopa toda, tal era o medo da velha Tin. Para não o maçar mais, paciente leitor, morra já este texto, morra..., Tin…! Mas faça o que fizer, esteja onde estiver e em qualquer situação, lembre-se sempre: Tin...!