Pampilhosa Linda

Espaço de libertação intelectual no âmbito das realidades transcendentes que ultrapassa as amplas margens da ortodoxia, com incursões na antropologia filosófica e na psicognosia, de cariz socio-cultural tenuamente perfumado com poéticas gotículas proeminentemente irónico-macónicas! Bem hajam!!!

terça-feira, abril 25, 2006

25 D`Abril...Sempre!!!

E tu camarada, onde estavas no 25 de Abril?
Era quinta feira, o dia amanheceu cinzento com nuvens próximas a prometer chuva. Entramos um pouco mais tarde para as salas e o professor, de mãos cruzadas atrás das costas, dava passadas calmas e com o olhar inquisitivo, misturava na retina as nossas cabeças e a dos pardacentos quadros fotográficos de Américo Tomás e Caetano. Decidido, resolveu então dar quatro passos em direcção às janelas e dizer com voz sentida:
-Vêm aí tempos turvos...Vá, arrumem lá as coisinhas e vão direitinhos a casa!
-E depois ?
-Bem, depois foi bom, muito bom mesmo! No outro dia também não tive aulas e no sábado já não precisei de ir praticar a famosa ginástica cueca da cartilha da mocidade. Foi aquilo a que mais tarde a minha querida democracia viria a chamar uma ponte do caraças. Esta ultima, foi sem dúvida uma das grandes conquistas de Abril, a outra foi a das aulas passarem a ser mistas (o que foi bom para as hormonas deles e delas também). É por isso que hoje se é mais precoce. Viva o 25 de Abril!
Na TV lá de casa, via incrédulo veículos a que chamavam insistentemente de chaimites, carregando ora crianças ora jovens soldados empunhando metralhadoras com cravos na ponta. Não sei porquê, mas na altura só me lembrava de uma celebre fábula :
Que levais na mão?
-São cravos, senhor!
-Está bem. E depois?
-Depois veio o 1º de Maio. Havia um cheiro e uma alegria diferentes. Nas ruas e nas casas... E naquele ajuntamento em Lisboa que fez corar de inveja os pouco hippies que existiam na altura. Que me lembre, era Woodstock todos os dias e em qualquer lugar. Até os comboios andavam mais devagar, porque os maquinistas iam à taberna com sorrisos de orelha a orelha e em vez de um, talvez bebessem dois. E na altura, as meninas da Rua Direita começaram sem medo a usar saias mais curtas e a aventurarem-se também na Rua Adelino Veiga, sobretudo na então famosa e saudosa esquina do Amendoim.
Surgiu aquele movimento que se viria a chamar de Abrilada.
-E depois?
-É o povo quem mais ordena! O POUS, a LUAR, a UDP,o PCTP e o MRPP ainda separados e os seus fantásticos murais graffiti com alusões ao proletariado, fora os outros clássicos que ainda hoje perduram. Lembro-me da chegada do Cunhal e do Soares... E do Camarada Vasco. Lembro-me das calças à boca de sino e às riscas, dos colarinhos estilo asa dos Thunderbird, do Citroen Dois Cavalos, dos Mini-Morris, dos Renault 12... E depois, além dos Beatles e da Tonicha, consegui finalmente ouvir Janis Joplin, Doors, Rollings e Bob Dillan; E também consegui ler 1984 muito antes desta data. Enfim, lembro-me de passar por não sei quantas reformas educativas, da bica a um pau, dos Definitivos, dos Três-Vintes e das greves (inclusive ao tabaco e a ter que fumar Fortuna). Depois veio a Pepsi e a Coca-cola. Na altura só havia Sagres, Super Bock ou Topázio e as àguas eram mesmo só água, nada dessa coisa desagradável dos sabores.
Eram greves, nacionalizações e greves de zelo. Juros nos bancos a 30% ou mais (aí que saudades da inflação a 20 ou 25 % ), e tudo isto para quê?
Para poder escrever estas baboseiras na certeza que me podem criticar sem eu vos mandar prender ou interrogar. Para vocês jovens, poderem dizer que só vão à tropa se quiserem... Inclusive as moças.
25 de Abril … SEMPRE!

segunda-feira, abril 17, 2006

Adeus Jennifer


Desfiz-me do peso que me sufocava e inspirei compulsivamente o ar que me fugia debaixo do cobertor. Com os pés, empurrei-o com força até ao chão, libertando-me do seu fogo abrasador, na esperança de aniquilar a súbita aflição que me assolou. O instinto de sobrevivência rebentou as correntes que me prendiam as pálpebras, provocando uma inócua colisão com o escuro do quarto. Com um salto ergui-me na cama e procurei avidamente os dígitos do relógio. Três e um quarto (bela hora!...) É impressionante a facilidade com que um mero sonho, um fugaz passeio recreativo do subconsciente nos interpela com a dura realidade da existência e, em milésimos, nos reduz à mais ínfima capacidade de ser humano. Respirei compassadamente para abrandar o ritmo cardíaco, ao mesmo tempo que (qual Ellery Queen), tentava reconstruir os factos… O sabor amargo da adrenalina pediu-me um cigarro, no entanto, senti que este familiar (fantástico) paladar, vinha acompanhado de um quase imperceptível “aroma” dos seus ondulados cabelos ruivos.
Voltei inesperadamente aos anos sessenta, à guerra colonial, à censura, às fotos a preto e branco.
Foi num habitual regresso a casa, chegado de Coimbra, que fui agraciado com a sua beleza intemporal. Estava sentada numa das mesas do bar da C.P segurando a chávena de café com as pontas dos dedos de uma das mãos, enquanto que a outra, vestida por uma luva de peliça preta, suportava um delgado cigarro.
-Então?
-Oh…Desculpe lá Sr. António, estava distraído. Era um maço de três vintes, “fachavor”.
Apreciei a sua beleza durante mais algum tempo. Fumei um cigarro, dois, três…Admirei a sua tez clara e a sua silhueta esbelta, imaginei como seria o seu corpo por baixo do casaco justo e da saia travada que lhe realçava a anca, como seria que o seu cabelo solto se adequaria ao contorno dos seios…Acabámos por fazer conversa. “Confiou-me” que era inglesa, que se dirigia a Paris e que por fim se iria refugiar durante uns tempos em Genebra (não me esclarecendo porém acerca dos motivos que levaram á escolha de um percurso tão singular).
Acabámos por jantar; fumámos e bebemos brandys. A pernoita foi numa pensão cá da terra, uma noite que entre beijos e promessas, contos e segredos, durou até á tarde do dia seguinte.
Chegada a hora do embarque, acompanhei-a junto da sua carruagem e permaneci até à partida. O ti António da cantina deixou escapar um sorriso quando o cumprimentei e manteve-se á porta do restaurante a observar o panorama.
As despedidas custam, mas às vezes custam ainda mais. Fiquei a vê-la a afastar-se debruçada na janela do Sud, com o queixo apoiado sobre as mãos e os olhos a deixarem escapar uma traiçoeira mas sentida lágrima. Tinha-me pedido que a visitasse mais tarde; prometi-lhe que sim, contudo, os dias vão passando, vão passando e quando se dá por ela acordamos a meio da noite em sobressalto, trinta e tal anos depois, já sem saber o que é sonho e o que é realidade.
Quando deixei de ver o comboio fiz meia volta em direcção à rua; profundamente comovido fingi não reparar no ti António, que continuava a apreciar o filme. Sempre com os olhos fincados no chão, fiz o caminho em direcção a casa, levantando-os apenas quando três jovens impecavelmente fardadas, me convidaram a contribuír com um donativo para os B.V.P.. Procurei nos bolsos do casaco. Num deles estavam cinco escudos que foram para os bombeiros, no outro estava… Uma bela madeixa de cabelo ruivo!
Até sempre!!!

sexta-feira, abril 14, 2006

A Paixão de Judas


É pois no Domingo de Páscoa que se repete uma das mais velhas tradições de cá da terra. Há pelo menos cem anos que movimentos nocturnos não identificados produzem uns bonecos manhosos (os famosos bonecos de Judas), que numa alusão ao maléfico personagem, atribuem características condenáveis a meia dúzia de elementos da comunidade. Tem sido assim ao longo dos anos. Um determinado conjunto de pessoas que se regem por determinados valores, tentam corrigir (ou denegrir) a imagem de um também determinado personagem que se rege por valores diferentes. No fundo, fazem o mesmo que os clãs rivais do Bronx, embora com outros métodos e proporções. Não são utilizados objectos perfuradores ou cortantes (apenas machados e serrotes, mas é só para cortar as figueiras), usando-se apenas umas simples folhas de papel com umas simples quadras que até nem referem o nome do visado, embora lhe façam um retrato tão perfeito que toda a gente fica logo a saber de quem se trata. Enfim, digamos que a tradição é realmente muito bonita mas o formato carece de tolerância e não parece visar uma confluência entre os diferentes pontos de vista dos diferentes “espécimes” da comunidade. Quem fica sempre com a pior fama é o desgraçado, o traidor, o bode expiatório, o maléfico Judas.
Não é do meu estilo, mas este ano o apetecido evento surge ao mesmo tempo que as noticias “reformistas” da comunicação social que referem a importância do recentemente divulgado evangelho de Judas e da coincidente (contra - reformista?) noticia de que aceder à Internet pode ser considerado pecado. Sendo assim, lembrei-me de deixar aqui duas ou três coisitas acerca do assunto e que passo a expor:
Digamos que nos seus primórdios o Cristianismo não era exactamente como hoje se apresenta. Estava em evolução e em construção e por isso existiam distintas correntes e diferentes pontos de vista sobre a matéria. Digamos que nem toda a gente pensava da mesma maneira, por isso foi importante a criação dos textos canónicos para a obtenção de uma uniformidade de pensamento e perspectivas. Do mesmo modo outros textos foram analisados de forma diferente e aproveitados por outras facções, os chamados textos apócrifos. Dentro destes, encontram-se os evangelhos gnósticos (os gnósticos eram uma facção cristã com algumas diferenças dos católicos, onde a mais proeminente é a forma de atingir a salvação, para os católicos seria através da fé, para os adeptos da gnose seria através do conhecimento). Foi por isso com expectativa que se procedeu ao estudo dos textos gnósticos encontrados no Egipto em 1945 numa compilação denominada Códice e na qual se encontra o tal evangelho de Judas. Segundo as comunidades que conceberam este documento, Judas não teria sido um traidor, mas sim o personagem com maior amor demonstrado ao mestre. Segundo esta versão, foi a pedido do próprio Jesus que judas se encarregou de apontar o local onde Ele se encontrava, a fim de que fosse aprisionado e se cumprissem os mandamentos, tendo por isso obtido um estatuto de grande importância perante Jesus. Ter-se-ia suicidado não por arrependimento, mas sim por pena e amor ao seu mestre.
Não sei qual das versões estará mais próxima da realidade, nem é neste momento importante; no entanto talvez não fosse descabido de vez em quando lembrarmo-nos de que existem outras maneiras de ver as coisas. Afinal de contas, se um meu semelhante tiver dificuldades nos negócios e cair numa situação de grandes dificuldades financeiras, será justo (ainda por cima) pregar um boneco numa figueira com uns textos alusivos ao acontecimento, enchê-lo de bombas e deitar-lhe fogo às dez da manhã, numa ridícula queima de bruxas em praça pública (como já aconteceu)?
Se calhar só vai ajudar a enterrar mais o desgraçado que já só tem a cabeça de fora! Em minha opinião talvez fosse melhor não interferir com a liberdade e o espaço das outras pessoas, afinal não podemos pensar todos da mesma maneira e todos estamos sujeitos a juízos de valor.
E pronto, acho que esta meia dúzia de linhas é suficiente para assinalar o espírito ”Pascoalício”.Vou aproveitar o dia de amanhã para me despedir do bacalhau e deliciar-me com uma bela posta de chanfana e claro, fazer figas para que o Randulfes não apareça pregado no coreto…
Bem, mas o que importa é que passemos todos uma boa Páscoa!
E, já agora, pensem lá um bocadito nisto…

terça-feira, abril 11, 2006

Os Afectos




"Eterno é o labirinto dos afectos, e por isso, estória sem desfecho, esta." *
Estou tranquilamente a auscultar a vida nas horas que por aqui passam. Estou tranquilamente sóbrio a embebedar o futuro. Ofereço um afago ao meu fiel animal e retorno satisfeito à minha tarefa. Estou feliz por conseguir um pouco de paz no buliço do quotidiano que nos esmaga; estou exausto que só eu sei. Ando, contudo, preocupado com a mortalidade dos afectos, essa magnífica invenção dos animais contra a brutalidade natural de Deus. Tomei um Valium e passou-me. Ao fim de algumas horas estava de novo preocupado. É uma questão que valorizo e me consome e creio que não chego lá com os ansiolíticos. Tenho para mim, estimado leitor, que não há na vida nada mais angustiante que ver morrer os afectos que não soubemos cultivar; na sua volatilidade sagaz, no seu misterioso estado incorpóreo, os afectos cristalizam em si toda a ternura e volúpia de animais tão abrutalhados como a Toupeira-das-Índias ou o Gnu da África Austral; e eu gosto disso! Os afectos são, per se, algo de superior: oferecemos, tiramos, não se quantificam, não se qualificam e creio que ainda não são cotados em bolsa. Eu, hoje, sinto que me falta um. Não sei onde ficou nem por onde anda; quem mo tirou? Temo não sabê-lo. Não sei sequer se está arrumado algures num gesto que ficou por dar, numa palavra estupidamente retida. Sei apenas o que sinto e sinto angustiadamente a sua falta. Observo de novo o meu fiel amigo: o seu olhar repleto de ternura pronto para a doçura, pronto para a aventura, retribui-me alguma calma. Estava disposto a, na sua companhia, arrancar porta fora e investir desenfreadamente em dois ou três afectos, investimento a longo prazo; felizmente, creio que ainda não são cotados em bolsa...
* Em "Conto do pequeno Édipo", da autoria de Suleiman Cassamo